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Notas de leituras: Bernhard e Murnane


 

Curtas, porém enormes, leituras de 2025:

 

1.        Mestres antigos, do austríaco Thomas Bernhard. Quando falamos em autores favoritos, eu entendo que estamos elencando aqueles cujas obsessões nos pegam de jeito. Bernhard repete vários de seus estratagemas habituais nesse livro, inclusive no foco em um personagem com verborragia virulenta. Grandes autores demonstram as limitações dos manuais de estilo. Ele imagina um sujeito que metodicamente visita a mesma sala e o mesmo banco de um museu, por anos a fio, dia sim, dia não. Daí os “mestres antigos” do título. Amando odiá-los, o sujeito coloca em exame o próprio sentido da arte e da cultura, em particular de origem germânica. Há, por exemplo, um monólogo dedicado a desancar a filosofia de Martin Heidegger e o que ela representa para a cultura europeia. A veemência com que o faz tornam as críticas de alguns filósofos a Heidegger de uma palidez esgarçada. A música clássica e outros grandes símbolos da cultura de língua alemã não são poupados no caminho. Contada a partir do olhar de um amigo mais novo do sujeito, a narrativa vai se delineando como um retrato de personagem ora cômico e patético, ora trágico e comovente.

 

2.        As planícies, do australiano Gerald Murnane. Meu primeiro do autor. A princípio o que veio forte foi uma construção de uma prosa poética em torno de um povo que se desenvolve na região das planícies, cuja relação com a própria nação australiana não é clara. Assim como a obra de Bernard, tem uma reflexão sobre outros tipos de arte que me interessa. O narrador está empenhado em construir um filme-documentário em torno das planícies. Para tanto, observa e toma notas. A fim de entender a região e o povo que a habita, passa a refletir sobre o tempo, os mapas, as bibliotecas. Um povo diferente demanda a compreensão de uma ontologia diferente. Suas elocubrações vão, assim, ficando cada vez mais parecidas com as obsessões de Jorge Luis Borges. Aqui, os pampas gaúchos são substituidos pelas planícies australianas. O argentino talvez seja mesmo uma das pedras de toque do “contemporâneo”. Suas obsessões parecem ter filiação no chileno Roberto Bolaño e no espanhol Enrique Vila-Matas. Mas encontrar esse tipo de afinidades eletivas entre contos de Borges com um australiano ainda vivo e frequentemente cotado para o prêmio Nobel de Literatura foi uma grata surpresa. Se eu soubesse, talvez tivesse começado a ler antes… (eu inclusive fui checar se essa era apenas uma impressão minha, mas já há, sim, artigos comparando Borges e Murnane.)

 

São ambas narrativas em primeira pessoa, que, no entanto, não focam na intimidade subjetiva do narrador, e sim no exterior a ser observado. Esse exercício de dessubjetivação se revela fascinante, pois vai em direção ao outro, fazendo com que a narrativa por vezes assuma um caráter ensaístico em torno de objetos a serem analisados e compreendidos. O curioso é que andei vendo gente reclamando do Nobel dado a Annie Ernaux devido a seu estilo por vezes jornalístico (e eu diria que também “ensaístico”). Isso está longe de ser um caso isolado. Pessoalmente, gosto bastante da tendência. Provavelmente é onde reconcilio meu amor pela narrativa de ficção e pela especulação filosófica.

 
 
 

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