O ensaísmo de entretenimento
- Luciana Molina

- há 19 horas
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Muitos se precipitam em denunciar o declínio da ficção nos tempos correntes. A produção de não ficção, no entanto, merece um escrutínio. Há um gênero de livros invadindo o mercado editorial brasileiro e, possivelmente, do mundo todo: o ensaísmo de entretenimento. Muito em breve, se bobear, vira categoria do Jabuti. Muito em breve, com fé na humanidade, as pessoas perceberão que existe diferença entre ensaísmo de pensamento e ensaísmo de entretenimento. Ou, talvez, a se julgar pelo mercado livreiro e editorial brasileiro, bem como pelos circuitos de consagração, não perceberão nunca.
O ensaio do entretenimento é aquele que idealmente seria escrito pelo Medalhão sobre o qual versa o conto “Teoria do Medalhão”, de Machado de Assis. Ao completar a maioridade, o filho é aconselhado pelo pai a se tornar um medalhão. É ensinado a salpicar elementos de erudição no seu discurso, ao mesmo tempo em que deve escrupulosamente evitar qualquer pensamento original.
O “ensaísmo de entretenimento” apresenta as seguintes características: estilo leve com comentários espirituosos, performance de reflexão, mas sem produção efetiva de profundidade ou originalidade. Poderia ser equiparado aos livros de divulgação científica. A diferença é que não estamos falando de ciências entendidas como tais, e sim daqueles que se apropriam dos discursos das Letras, das Artes, da Filosofia e das Ciências Humanas (com seu polêmico estatuto epistemológico entre ciência e arte) para entregar o arremedo de uma tradição chamada ensaísmo.
A observação atenta dos mostruários das livrarias e do catálogo das grandes editoras comerciais revelaria sua existência inequívoca. Já há claros equivalentes do gênero em crítica literária, linguística, história, antropologia, teoria de gênero, filosofia política etc. Do exterior, muitos não hesitariam em apontar Byung-Chul Han como exemplo. O autor sul-coreano radicado na Alemanha parece operar com um princípio comum a todo ensaísta de entretenimento: reúne ideias que, apesar dos ares filosóficos, já foram previamente desenvolvidas por outros autores com mais singularidade, e, por isso, podem ser reputadas como de domínio público.
O ensaio de entretenimento se constrói com verniz intelectual. Cita acadêmicos, pensadores, artistas - em geral em versões simplificadas e destituídas de sua complexidade. Freud de manual: comporta-se como se refletir sobre Freud fosse fazer piadas sobre psicanálise à la Woody Allen. Mas, como todo conhecimento de superfície e ornamental, não dá nem peteleco nas teorias psicanalíticas.
Em vez de efetivamente questionar as relações de dominação entre homens e mulheres ou a definição de gênero como fazem Beauvoir ou Butler, constitui-se como pastiche da crítica, em que os resultados já são sabidos com antecedência, e frequentemente se convertem em piadas cúmplices.
O ensaio de entretenimento substitui a dúvida pela anedota pitoresca. Exemplos são empilhados pela lógica da curiosidade lúdica, e não com o propósito de investigar uma questão. Nos seus piores momentos, o ensaio de entretenimento é uma versão mais longamente expositiva de o Guia dos Curiosos. A sensação é de ser alimentado por vários drops informativos. Constitui-se como o Gabinete de Curiosidades dos Antiquários. A rádio-relógio escutada por Macabéa – agora, na versão culta. Do ponto de vista da tipologia textual, o ensaio de entretenimento é mais expositivo que argumentativo, pois se assemelha a uma coluna jornalística estendida, e não disputa epistemologicamente nada de particular. Empilha casos, exemplos e pequenas unidades de sentido, ao mesmo tempo em que escamoteia a vaziez de propósito.
O ensaio de entretenimento não apresenta novidade, mas deve posar de novidade. Por isso todo o aparato e o sem-número de profissionais da indústria vão ajustar o livro para ter um título ou pelo menos um subtítulo chamativo. As pessoas poderão supor que a obra joga nova luz a um tema premente, urgente, em voga. Quando o leitor versado o escrutina, no entanto, depara-se com uma compilação de ideias familiares. É uma série de déjà vus em cascata. O gênero se constitui a partir do estranho paradoxo: não apresenta qualquer consistência de tese, ao mesmo tempo em que é afirmativo, porque desfila fatos, arrazoados e variações do já-sabido.
Se escrito hoje, o ensaio de entretenimento poderia ser sobre Pós-colonialismo, Antropoceno, Inteligência Artificial. A intenção é sugerir que há algo de importante e urgente a ser tratado. O ensaísmo de entretenimento tem por hábito cair no autoengano de indistinção entre moda intelectual e atualidade crítica.
Na curadoria de referências do ensaísmo de entretenimento, deve haver um pouco de clássico e um pouco de cultcontemporâneo. Desse modo, atinge-se a dose perfeita de Distinção. Seu prestígio se constrói a partir do equilíbrio entre erudição e atualidade. O ensaio de entretenimento mantém a aura cool de quem sabe qual é a próxima coisa que deve entrar na moda.
Tradicionalmente, o gênero ensaio em sentido forte não é apenas prosa culta e tampouco prosa para autor e leitor se sentirem cultos. Mas sim exame de objetos e problemas. No ensaísmo de entretenimento, temos prosa medianamente culta para passar o tempo do leitor. O ensaio em questão não faz pensar. Ele tão-somente ocupa as horas. Quando muito, é informativo, pois compila signos de erudição.
O ainda não compreendido, aquilo que se busca compreender e que escapa ao próprio pensamento, era a base do ensaísmo. O ensaísmo queria tentar pensar o ainda não pensado. Em sua raiz, trata-se de uma arapuca anti-positivista. E podemos dizer ainda: discreta, pois come seu objeto pelas beiradas e com delicadeza. O ensaio se sabe de antemão forma derrotada pelo assunto arisco que ele não consegue dominar em sua inteireza. Não faz estardalhaço das verdades, dos achados, das vitórias. É, assim, o oposto da eureca do ensaísmo de entretenimento. O ensaísmo de entretenimento é triunfalista.
Uma diferença crucial ocorre no tratamento do objeto-tema. No ensaísmo, a escrita buscar encharcar-se no objeto, de maneira a captá-lo de forma tão precisa que, para isso, é necessário admitir sua incapacidade de descrevê-lo em sua totalidade. Antes da linguagem se exaurir, o ensaísmo chega ao limite do conhecimento e às zonas de obscuridade dos objetos examinados. O ensaísmo admite o não saber. Por isso, seu modelo é o do Stalker explorando as zonas enigmáticas do filme de Tarkovski. Já o outro modelo retira inspiração dos blockbusters de ação.
É o produto perfeito para um tempo em que a capacidade crítica das pessoas se atrofiou de tal forma que até a reflexão vem embalada em ideias prontas. Ou seja, se o ensaísmo literário foi levado à maestria por autores como Walter Benjamin e Susan Sontag, e, no Brasil, tornou-se fértil na produção de autores de tradições teóricas distintas, tais como Roberto Schwarz e Silviano Santiago, o "ensaísmo de entretenimento" finge pensamento, mas entrega simplificações vulgares. É, em muitos sentidos, oposto ao que se entendia por ensaio, em que o autor trabalhava um tema, mas mantinha dúvidas suspensas e até mesmo o adiamento e a impossibilidade de conclusão definitiva. Mesmo quando a matriz do conhecimento não é propriamente a filosofia, o ensaísmo tem algo da perplexidade filosófica. Assim faz com a literatura, a cultura, a sociedade: mostra-as em suas fissuras e enigmas.
O trabalho intelectual, ainda que de maneira relativamente modesta, deveria, após a iniciação e formação em um campo de conhecimento, propor contribuições novas a esse mesmo campo. Em tese. Porque o trabalho intelectual e acadêmico não é uma mônada flutuando além da sociedade e do mercado editorial. E, por isso, é ele próprio afetado pelos influxos desses dois âmbitos.
Cada vez mais acadêmicos formados têm se tornado autores de ensaios de entretenimento. Uma das razões para isso é provavelmente o fato de a academia ser pressionada - não só, mas também - pelos órgãos de fomento a mostrar-se mais relevante para o público em geral. Esse movimento se constitui como uma reivindicação para que os acadêmicos meçam forças com os influencers e os produtores de conteúdo. Questiona-se, contudo, se, ao se lançarem à empreitada, os acadêmicos elevam o nível dos influencers, ou simplesmente descem ao nível deles. O certo é que os dois grupos estão se encontrando numa mediania.
Mesmo do ponto de vista pessoal, há cada vez mais acadêmicos buscando glória e louros nos elogios do público geral. Se você for uma subcelebridade do mundo intelectual, com presença nas redes, convites para as mídias tradicionais ou novas, pronto!, você é um ensaísta de entretenimento – ao menos em potencial. E pode reivindicar esse espaço ou ser convidado a ocupá-lo a qualquer momento.
Ao lançar A sociedade do espetáculo em 1967, Guy Debord trouxe ao mundo uma obra luminosa que, segundo ele próprio, encontrava novas confirmações a cada dia que passava. Ele enxergou com lucidez quase premonitória o modo pelo qual o espetáculo diluía qualquer sentido de especialização. Há uma incompatibilidade intrínseca entre o conhecimento especializado e o saber que se quer deliberado pela opinião pública e pelo senso comum – como se uma discussão que demanda formação específica fosse passível de ser decidida pelo voto popular. Com isso, o próprio conhecimento e a universidade como espaço de construção de saber contra-hegemônico estão cada vez mais ameaçados.
Esses resultados são obtidos a partir da construção da forma e do estilo. Ao ler um ensaio de entretenimento, poderíamos lembrar de outro que foi lido no ano anterior. No entanto, sequer é possível lembrar daquilo que não deixa fortes impressões. Mesmo quando exploram temas muito distintos, os diferentes ensaios de entretenimento frequentemente manipulam um mesmo tipo de autoralidade de massas – e que quase sempre soa anódina.
A ideologia se cristaliza e opera na forma, no estilo, na expressão. A pasteurização é garantia de ampliação de leitores e se confirma até na escolha vocabular com vistas a produzir comentários jocosos.
Dois livros diferentes podem, por exemplo, tascar o adjetivo “pimpão” para desqualificar (ainda mais) um ponto de vista considerado inferior. Exame de ideias? Abertura ao contraditório? Nem pensar. Ironia condescendente. Afinal, não é preciso se esforçar tanto por criticar um ponto de vista que já está de saída derrotado. O ensaio de entretenimento não raro se satisfaz em apresentar uma crítica breve e corrosiva a uma tendência intelectual que foi exposta a partir de uma falácia do espantalho. A lógica discursiva do cancelamento passa a dominar internamente a produção intelectual. Em vez de argumentação e demonstração cuidadosas, lacre. A impostura intelectual falsifica em um mesmo golpe tanto o conhecimento como a ética do argumento.
Não há nada efetivamente a ser mostrado, expresso, apontado. Não há sequer desejo de convencimento, pois frequentemente o público já está previamente convencido. Às vezes, um ensaísta de entretenimento cita outro ensaísta de entretenimento. Afinal, é garantia de que está citando alguém que, como ele próprio, quando pensa alguma coisa, não pensa nada de mais.
O ensaio de entretenimento é um híbrido mutante que sugere reflexão, mas entrega pensamento pronto. Os ensaístas de entretenimento podem evitar os clichês expressivos mais óbvios depois de cuidadosa revisão pela editora, mas não conseguem se desfazer dos clichês de raciocínio. Em alguns casos, até as referências e os exemplos são previsíveis. Ou seja, engana-se quem acha que é possível resolver tudo a partir de redação bem revisada. Olhares e pensamentos batidos não são detectados por revisão técnica de textos. Mesmo que pudessem, é de se questionar se isso não seria contrário ao objetivo editorial de vender livros.
Faz-se um ajuste entre o que a opinião pública espera e o que se deve falar. Se o ensaio raiz jogava contra o leitor e até contra si mesmo, o ensaio de entretenimento joga para o público. Seu público-alvo é o eterno público médio. Ele não quer ler autoajuda e nem o último livro-conforto de ficção japonesa. Acha Machado de Assis e Sérgio Buarque de Holanda muito complexos. Então que tal uma mediania? Algo meio jornalismo cultural?
O ensaísmo de entretenimento promete reflexão, mas dispara dados e conclui apressadamente – e, em geral, as conclusões são banais. Ideias que você já viu de outras formas na web. Talvez inclusive vociferadas por alguém em uma rede social. É pensamento para quem não tem tempo ou disposição de pensar.
Ao fim e ao cabo, é o complemento perfeito para um tempo que vive de Fake News. É só disparar alguns dados corretos, enfileirá-los em português revisado na norma padrão por uma grande editora, encaixar alguns comentários divertidos e... eis o ensaísmo de entretenimento. Ensaísmo com muito name-dropping e pouco deslocamento de perspectiva. O leitor sai do livro como entrou, mas com umas referências a mais. Talvez seja essa a principal finalidade do ensaísmo de entretenimento: fazê-lo tomar contato com referências de livros para incluir nas leituras futuras. Ele mesmo provavelmente será esquecido em breve, já que não assombra a página com a dúvida e com o incognoscível.
Ler um bom ensaio é como espremer um limão. Tenta-se tirar o suco ao máximo, e mesmo assim algumas gotas permanecem inacessíveis. No bom ensaio, ocorre uma fusão entre pensamento e expressão. O ensaísmo de entretenimento dificilmente se presta a uma releitura, porque é transparente na primeira tacada. Ele diz muito a que veio, ao mesmo tempo em que não veio para nada de particular.
Em teoria, o ensaio seria diferente de uma crônica, mas até mesmo isso se torna cada vez mais embaralhado, e mesmo uma revista que se diz especializada em ensaios pode cada vez mais substituir o lugar do pensamento por relatos em primeira pessoa. A crônica é comumente taxada como um gênero tipicamente brasileiro, e, a princípio, não deveria ser descartada como incompatível com o ensaio. Na realidade, o relato em primeira pessoa remonta a tempos e obras de pensamento de primeira grandeza, a exemplo de Confissões, de Santo Agostinho; Meditações, de Descartes; os Ensaios de Montaigne; as imagens dialéticas de Walter Benjamin em obras como “Infância em Berlim por volta de 1900” etc. Mesmo Platão valoriza a experiência pessoal ao tomar sua relação com Sócrates como ponto de partida para escrever os diálogos socráticos. O grande problema dos nossos tempos não é a autoficção entendida como tal, e sim a experiência estética de superfície, que não mergulha para o insondável e o complexo. Ficção e não ficção contemporâneas se assemelham pela obsessão da autoconfirmação.
No ensaísmo de entretenimento não há nada de especulativo e investigativo. Para tanto, o autor teria que habitar um certo ceticismo epistemológico. Tampouco há compromisso com a verdade como experiência de fronteira. Para isso, seria necessário arriscar errar o alvo. Mas também arriscar acertar. O ensaísmo de entretenimento é uma profissão de fé com valores intercambiáveis. Constitui-se como a atualização da famosa piada atribuída a Groucho Marx: se alguém não gosta de seus princípios, é possível trocá-los por outros.
Talvez seja o livro ideal para as classes médias e altas lerem nas férias enquanto tomam sol à beira da piscina se achando muito informadas, muito de esquerda. Ainda não ocorreu às grandes editoras explorar com mais firmeza o filão de mercado “leitores retrógrados”, pois continuam descrentes de que esses de fato leiam qualquer coisa. O ensaísmo de entretenimento é majoritariamente progressista.
Ele surge do consenso – mesmo que do interior de apenas um segmento social – e, ao final do livro, conclui com o mesmo consenso. O que deveria ser demonstrado nunca é de fato demonstrado, porque a reflexão dá lugar à aparência de reflexão. Trata-se de prova de pertencimento social via opinião e, por isso mesmo, qualquer possibilidade de dissenso, contradição e diferença efetiva é rapidamente reprimida e eliminada.
A sociedade atual se ilude com a ideia de que basta conclamar constantemente o poder da leitura para reafirmar seu compromisso com o pensamento crítico. Nada disso está garantido de antemão quando observamos a ascensão de modos de escrita que, devido a seu enorme contingente de matéria morta, permitem leituras mais passivas – e que acabam por sabotar, com a força do exemplo, o sentido de leitura complexa, profunda e disruptiva. Afinal, a sociedade contemporânea acentuou a prática de leitura pelo WhatsApp e demais redes sociais. O teor e as características do que se lê também deveriam estar em questão. Por isso mesmo se faz importante discutir o ensaísmo de entretenimento e sua semelhança com o binge-watching obsessivo do feed e do streaming. O leitor dessa modalidade de livros está entre o zumbi e o autômato passando páginas. Provavelmente não há diferença qualitativa significativa entre o ensaísmo de entretenimento e a criação de conteúdo para as redes sociais, e nem no modo como ambos os produtos são consumidos pelo público. Não se trata da versão criativa do ócio, e sim da versão administrada: como não passam tempo sozinhas com o próprio pensamento, as pessoas não o cultivam com independência. Em vez disso, tags e slogans funcionam como atalhos para a aquisição de um vocabulário comum que se revela como uma espécie de totalitarismo ilustrado.
O que é aplainada não é só a linguagem como expressão: é o próprio mundo, é a própria realidade, transformada em companhia divertida de fácil assimilação para poucas horas. Mais tarde, o leitor vai comentar sobre o ensaio de entretenimento que acabou de ler com os amigos no carro subindo a serra e, em vez de produzir estupor, surpresa, questionamentos, vai ouvi-los concordando em uníssono. Se todos pensam a mesma coisa, o provável é que ninguém esteja de fato pensando.
[Texto originalmente publicado em 20 de novembro de 2025, no site A terra é redonda]



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